terça-feira, 10 de julho de 2018

O Cárcere Tutelar: cuidar e algemar




O Diabo no Tarô Mitológico. Embora comumente alerte para uma maior atenção ao instintos mais primitivos, carrega também o risco do aprisionamento da vontade, seja pelos nossos vícios, seja pela articulação mal intencionada de outrem que visa nos controlar, usar e quebrar nossa autonomia.


       Um dos grandes males de nossa sociedade contemporânea é a tutela que se transforma em dominação. Por conta de uma conservação excessivamente tradicionalista, ou construção não-reflexiva, de relações artificiais de respeito, hierarquia, autoridade imposta ou da exploração mal-intencionada de uma dependência financeira (esta última cada vez mais próxima da realidade das células familiares contemporâneas), indivíduos com potenciais significativos se veem tolhidos, ainda no seio familiar, no que concerne à expressão de seus potenciais criativos. O necessário dever de orientar um infante sobre como viver no mundo é o pretexto por onde são implantadas as ideologias dos pais e outros familiares ou cuidadores, além de relações de cobrança ou dependência, exigências estas danosas para o organismo/psiquismo em desenvolvimento.



Falácia de recurso à força: você deve obedecer pela razão lógica de ainda querer manter os seus dentes. Quando o indivíduo abaixo da hierarquia é um filho(a), vale o "Princípio de Rochelle": "Te coloquei no mundo e posso te tirar dele."

        Não é incomum que as ideologias e o grau de desenvolvimento emocional dos pais (não me refiro de modo algum ao grau de instrução formal) sejam primitivos e brutalizantes, comprometendo o desenvolvimento dos filhos. É corriqueiro assim, o abandono gradual de atividades criativas por parte de crianças e adolescentes, em favor de rotinas que desembocarão em atividades mecânicas e puramente direcionadas ao eixo binário prazer/sobrevivência. Também se torna um grande câncer a reprodução dos hábitos parentais na conduta destes novos indivíduos em sociedade, a depender do quão nocivos sejam estes hábitos.



Corrente do Mal: Eu fiz, e antes meu pai, o pai de meu pai, o pai do pai de meu pai...em uma grande e linda tradição de família.

      A relação de dominação envolve essencialmente diminuir a pessoa sob tutela. Amiúde, aquele que domina é a criatura mais inepta e brutalizada que se poderia conceber, mas consegue se impor de alguma forma que inflige pressão e sofrimento, seja pela força, pelo medo, ou outros meios mais sutis e insidiosos, como a relação chantagem/obediência de relações familiares ou institucionais. Uma relação de tutela assim está contaminada pelo germe da exploração, onde as habilidades do cativo, enquanto ser diminuído que não consegue sair de seu cativeiro, são aproveitadas pelo opressor, o qual normalmente está muito aquém do potencial de seu prisioneiro.



Quantas vezes não fomos completamente apagados por pessoas que se aproveitam de tudo o que podemos oferecer, sob o discurso de que somos incapacitados para assumir nossas próprias vidas?

       Qualquer tímido esboço de posicionamento por parte do dominado, é abafado frequentemente por meio de comentários depreciativos como "É porque você ainda não tem a percepção que tenho", ou "Você não está vendo de forma inteligente", ou "Quando você amadurecer podemos conversar", ou "Você ainda não desenvolveu sua inteligência suficientemente"... a lista é tão longa quanto o forem a arrogância do dominante e as insurgências do dominado.



Cada tentativa de insurgência é uma desqualificação por parte do tutor: ao final, nos sentimos incompetentes sim, mas por tentarmos em vão recuperar nossa autonomia sem sucesso, diante de alguém que se dedica 24h a reduzir nossa autoconfiança ao nada.




Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar
Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Sorrir pra não chorar
Quero assistir ao sol nascer
Ver as águas dos rios correr
Ouvir os pássaros cantar
Eu quero nascer
Quero viver...
(Preciso me encontrar, Cartola)

       Aqueles que buscam manter uma relação de tutela sobre outrem, via de regra buscam também parecer benevolentes e bons protetores. Uma boa parcela desta classe chega até mesmo a acreditar que possui estas qualidades. Mas a relação ainda é a de dominação, na medida em que o outro não é ouvido ou consultado sobre seus desejos e necessidades mais pessoais. Ao contrário, as decisões são tomadas em lugar deste outro, muitas vezes em seu nome. Tenta-se comprar e aliciar aquele que está cativo com bens e uma discutível proteção, lhe abarrotando de coisas as quais pretensiosamente se julgou que iria apreciar, visando assim obter mais facilmente sua docilidade.




Você me tem fácil demais

Mas não parece capaz

    De cuidar do que possui...

Não faça assim
Não faça nada por mim
Não vá pensando que eu sou seu
Você me diz o que fazer

Mas não procura entender

Que eu faço só pra te agradar

Me diz até o que vestir

Com quem andar e aonde ir

Mas não me pede pra voltar...

(Nada por mim, Kid Abelha)



Fonte: Diário Catarinense. Foto tirada para uma reportagem sobre mulheres vítimas de violência familiar. Não se pode deixar de mencionar que os algozes pretensiosamente julgam saber mais sobre as necessidades da vítima do que elas próprias.


         Vemos na obra cinematográfica "O Conto da Princesa Kaguya" como seu pai era um idiota, no sentido de ter renunciado a qualquer esforço por se colocar no lugar do outro, no caso, da Princesa, reproduzindo assim a cultura machista e misógina de uma época, acreditando, de seu ponto de vista, estar muito bem-intencionado.



"O Conto da Princesa Kaguya", do Estúdio Ghibli. Os sentimentos do tutor da Princesa podem ser traduzidos como "Você é minha chance de me realizar".

       Ao projetar suas próprias frustrações e desejos à figura da Princesa (que era sua justificativa para realizar a si próprio), percebeu seu terrível erro muito tardiamente, quando a lucidez já lhe era trágica por não haver mais nada que pudesse ser feito. A despeito de sua monstruosidade, para os tempos dos quais é fruto pode-se dizer que era só mais um indivíduo estúpido e sincero que acreditava sinceramente que fazia a coisa certa pelo bem do outro, e, como em toda cultura onde os direitos individuais são cerceados em nome do "respeito familiar", se sentia plenamente legitimado por ela no que concerne à sua tutela sobre a Princesa.




Lágrimas de sangue por dentro. O preço de se abaixar, para atender às expectativas de um idiota, é alto demais. 

         Na sociedade atual que segue moldes eurocêntricos, a consanguinidade torna-se uma "maldição familiar" quando o assunto é a tutela. Neste padrão, as famílias se estruturam em função de laços de sangue, eugenicamente repetindo inconscientemente a tentativa de expandir sua linhagem, procedimento comum entre alguns antigos povos europeus. Este costume, propagado e conservado irrefletidamente por gerações, pode ter contribuído de algum modo para as razões pelas quais agora somos forçosamente obrigados a aceitar e ser hospitaleiros com perfeitos desconhecidos ou indivíduos com os quais deveríamos na verdade nos afastar, a pretexto de obedecer ao chamado do sangue



O banquete está servido. O prato principal é você, seu espaço pessoal e o respeito à sua individualidade, o qual será fatiado em oito pedaços.

            Esta colonização de nosso espaço pessoal que é levada à cabo contra nossa vontade, em função de um direito natural de sangue, é também a base e fundamento para a prática da tutela familiar em nossa cultura, a submissão imposta e obrigatória àqueles que são mais ineptos que nós por apelo ao sangue, os quais mantém sua relação conosco muitas vezes vampirizando nosso potencial e nos legando sempre a posição de menoridade.



Como ser alguém, como ser você mesmo, quando atado, sugado, aprisionado por criaturas obtusas e às vezes deliberadamente mal intencionadas, que não permitirão que você libere sua luz? 

             Parece haver, porém, um modelo alternativo de relações familiares que dispensa a prática da tutela em favor da prática do respeito genuíno e da amizade. Para certos nativos brasileiros do passado, construir uma família se constituía em uma questão de gratidão, merecimento e convivência envolta em respeito mútuo. Este ponto era de tal importância nas relações, que os indivíduos "cediam" seus próprios nomes aos membros familiares que eram escolhidos e incluídos por eles, o que não era feito exclusivamente através de critério de sangue, mas sim de reconhecimento de amizade. Assim, recebiam também, se quisessem, esta honra, ou seja, o nome de outros indivíduos que os tinham como família. Este reconhecimento do "eu sou você" envolvido em compartilhar o mesmo nome, propiciava uma genuína igualdade nas diferenças, tornando o outro alguém respeitável para mim, e não uma propriedade humana a ser administrada ou usufruída.


"Eu vejo você."

      O relacionamento que não questiona a ideia de ser "conquistado", por mais sólido e harmonioso que aparente ser, pode estar sendo uma colonização para uma das partes ou para ambas, na medida que instaura a tutela unilateral ou mútua que impõe limitações, proibições, usurpação de direitos, e a menoridade às pessoas. Há alguma forma de dominação envolvida nos relacionamentos colonizadores, o que é bem distinto da possibilidade de fazer concessões que sejam parte da distribuição equitativa de direitos e deveres por meio de acordos firmados no processo construir-se a relação.


"Can't you see that you're smothering me?/Você não consegue ver que está me sufocando?/ Holding too tightly, afraid to lose control.../Segurando tão apertado, com medo de perder o controle..." (Numb, Linkin Park)

Por fim, é inevitável não deixar de pensar se, do ponto de vista da responsabilidade existencial, em uma sociedade doentia na qual o indivíduo está fadado a ter uma "morte natural", com sofrimento que seja suportável somente se for extremamente afortunado, desejar irrefletidamente possuir uma prole pode, em certo prisma, ser visto como um crime, uma falha moral, na medida em que é uma falta de esforço consciente em refletir sobre as consequências da existência para um outro. Isto porque o fato de ter filhos, para um número cada vez maior de indivíduos, quando não ocorre por razões acidentais, se origina a partir de um egocêntrico fetiche de tutelar a existência de alguém.



"Quero ter filhos, para que sejam extensões de mim mesmo, e isto está ok. Quero cuidar de outro ser porque isto torna minha existência insignificante talvez um pouco mais interessante. É meu fetiche ser o deus de um outro ser, e isto até eu enjoar..."

     Libertemo-nos enquanto ainda podemos respirar, enquanto ainda há luz do sol a ser vista, enquanto ainda há desejo em nós.


Veja, a prisão, assim se chama


Eu disse: Venha
Eu não vou me abrir desta forma novamente
Nem deitar o meu rosto no chão
Nem os meus dentes na areia
Eu não vou ficar assim por dias após o fim
Você não vai me ver cair
Nem me ver lutar para ficar
Para ser reconhecido por algum toque
De suas mãos enrugadas
Você vê, a prisão, assim se chama.
(Song for Zula- Phosphorescent)