terça-feira, 10 de julho de 2018

O Cárcere Tutelar: cuidar e algemar




O Diabo no Tarô Mitológico. Embora comumente alerte para uma maior atenção ao instintos mais primitivos, carrega também o risco do aprisionamento da vontade, seja pelos nossos vícios, seja pela articulação mal intencionada de outrem que visa nos controlar, usar e quebrar nossa autonomia.


       Um dos grandes males de nossa sociedade contemporânea é a tutela que se transforma em dominação. Por conta de uma conservação excessivamente tradicionalista, ou construção não-reflexiva, de relações artificiais de respeito, hierarquia, autoridade imposta ou da exploração mal-intencionada de uma dependência financeira (esta última cada vez mais próxima da realidade das células familiares contemporâneas), indivíduos com potenciais significativos se veem tolhidos, ainda no seio familiar, no que concerne à expressão de seus potenciais criativos. O necessário dever de orientar um infante sobre como viver no mundo é o pretexto por onde são implantadas as ideologias dos pais e outros familiares ou cuidadores, além de relações de cobrança ou dependência, exigências estas danosas para o organismo/psiquismo em desenvolvimento.



Falácia de recurso à força: você deve obedecer pela razão lógica de ainda querer manter os seus dentes. Quando o indivíduo abaixo da hierarquia é um filho(a), vale o "Princípio de Rochelle": "Te coloquei no mundo e posso te tirar dele."

        Não é incomum que as ideologias e o grau de desenvolvimento emocional dos pais (não me refiro de modo algum ao grau de instrução formal) sejam primitivos e brutalizantes, comprometendo o desenvolvimento dos filhos. É corriqueiro assim, o abandono gradual de atividades criativas por parte de crianças e adolescentes, em favor de rotinas que desembocarão em atividades mecânicas e puramente direcionadas ao eixo binário prazer/sobrevivência. Também se torna um grande câncer a reprodução dos hábitos parentais na conduta destes novos indivíduos em sociedade, a depender do quão nocivos sejam estes hábitos.



Corrente do Mal: Eu fiz, e antes meu pai, o pai de meu pai, o pai do pai de meu pai...em uma grande e linda tradição de família.

      A relação de dominação envolve essencialmente diminuir a pessoa sob tutela. Amiúde, aquele que domina é a criatura mais inepta e brutalizada que se poderia conceber, mas consegue se impor de alguma forma que inflige pressão e sofrimento, seja pela força, pelo medo, ou outros meios mais sutis e insidiosos, como a relação chantagem/obediência de relações familiares ou institucionais. Uma relação de tutela assim está contaminada pelo germe da exploração, onde as habilidades do cativo, enquanto ser diminuído que não consegue sair de seu cativeiro, são aproveitadas pelo opressor, o qual normalmente está muito aquém do potencial de seu prisioneiro.



Quantas vezes não fomos completamente apagados por pessoas que se aproveitam de tudo o que podemos oferecer, sob o discurso de que somos incapacitados para assumir nossas próprias vidas?

       Qualquer tímido esboço de posicionamento por parte do dominado, é abafado frequentemente por meio de comentários depreciativos como "É porque você ainda não tem a percepção que tenho", ou "Você não está vendo de forma inteligente", ou "Quando você amadurecer podemos conversar", ou "Você ainda não desenvolveu sua inteligência suficientemente"... a lista é tão longa quanto o forem a arrogância do dominante e as insurgências do dominado.



Cada tentativa de insurgência é uma desqualificação por parte do tutor: ao final, nos sentimos incompetentes sim, mas por tentarmos em vão recuperar nossa autonomia sem sucesso, diante de alguém que se dedica 24h a reduzir nossa autoconfiança ao nada.




Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar
Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Sorrir pra não chorar
Quero assistir ao sol nascer
Ver as águas dos rios correr
Ouvir os pássaros cantar
Eu quero nascer
Quero viver...
(Preciso me encontrar, Cartola)

       Aqueles que buscam manter uma relação de tutela sobre outrem, via de regra buscam também parecer benevolentes e bons protetores. Uma boa parcela desta classe chega até mesmo a acreditar que possui estas qualidades. Mas a relação ainda é a de dominação, na medida em que o outro não é ouvido ou consultado sobre seus desejos e necessidades mais pessoais. Ao contrário, as decisões são tomadas em lugar deste outro, muitas vezes em seu nome. Tenta-se comprar e aliciar aquele que está cativo com bens e uma discutível proteção, lhe abarrotando de coisas as quais pretensiosamente se julgou que iria apreciar, visando assim obter mais facilmente sua docilidade.




Você me tem fácil demais

Mas não parece capaz

    De cuidar do que possui...

Não faça assim
Não faça nada por mim
Não vá pensando que eu sou seu
Você me diz o que fazer

Mas não procura entender

Que eu faço só pra te agradar

Me diz até o que vestir

Com quem andar e aonde ir

Mas não me pede pra voltar...

(Nada por mim, Kid Abelha)



Fonte: Diário Catarinense. Foto tirada para uma reportagem sobre mulheres vítimas de violência familiar. Não se pode deixar de mencionar que os algozes pretensiosamente julgam saber mais sobre as necessidades da vítima do que elas próprias.


         Vemos na obra cinematográfica "O Conto da Princesa Kaguya" como seu pai era um idiota, no sentido de ter renunciado a qualquer esforço por se colocar no lugar do outro, no caso, da Princesa, reproduzindo assim a cultura machista e misógina de uma época, acreditando, de seu ponto de vista, estar muito bem-intencionado.



"O Conto da Princesa Kaguya", do Estúdio Ghibli. Os sentimentos do tutor da Princesa podem ser traduzidos como "Você é minha chance de me realizar".

       Ao projetar suas próprias frustrações e desejos à figura da Princesa (que era sua justificativa para realizar a si próprio), percebeu seu terrível erro muito tardiamente, quando a lucidez já lhe era trágica por não haver mais nada que pudesse ser feito. A despeito de sua monstruosidade, para os tempos dos quais é fruto pode-se dizer que era só mais um indivíduo estúpido e sincero que acreditava sinceramente que fazia a coisa certa pelo bem do outro, e, como em toda cultura onde os direitos individuais são cerceados em nome do "respeito familiar", se sentia plenamente legitimado por ela no que concerne à sua tutela sobre a Princesa.




Lágrimas de sangue por dentro. O preço de se abaixar, para atender às expectativas de um idiota, é alto demais. 

         Na sociedade atual que segue moldes eurocêntricos, a consanguinidade torna-se uma "maldição familiar" quando o assunto é a tutela. Neste padrão, as famílias se estruturam em função de laços de sangue, eugenicamente repetindo inconscientemente a tentativa de expandir sua linhagem, procedimento comum entre alguns antigos povos europeus. Este costume, propagado e conservado irrefletidamente por gerações, pode ter contribuído de algum modo para as razões pelas quais agora somos forçosamente obrigados a aceitar e ser hospitaleiros com perfeitos desconhecidos ou indivíduos com os quais deveríamos na verdade nos afastar, a pretexto de obedecer ao chamado do sangue



O banquete está servido. O prato principal é você, seu espaço pessoal e o respeito à sua individualidade, o qual será fatiado em oito pedaços.

            Esta colonização de nosso espaço pessoal que é levada à cabo contra nossa vontade, em função de um direito natural de sangue, é também a base e fundamento para a prática da tutela familiar em nossa cultura, a submissão imposta e obrigatória àqueles que são mais ineptos que nós por apelo ao sangue, os quais mantém sua relação conosco muitas vezes vampirizando nosso potencial e nos legando sempre a posição de menoridade.



Como ser alguém, como ser você mesmo, quando atado, sugado, aprisionado por criaturas obtusas e às vezes deliberadamente mal intencionadas, que não permitirão que você libere sua luz? 

             Parece haver, porém, um modelo alternativo de relações familiares que dispensa a prática da tutela em favor da prática do respeito genuíno e da amizade. Para certos nativos brasileiros do passado, construir uma família se constituía em uma questão de gratidão, merecimento e convivência envolta em respeito mútuo. Este ponto era de tal importância nas relações, que os indivíduos "cediam" seus próprios nomes aos membros familiares que eram escolhidos e incluídos por eles, o que não era feito exclusivamente através de critério de sangue, mas sim de reconhecimento de amizade. Assim, recebiam também, se quisessem, esta honra, ou seja, o nome de outros indivíduos que os tinham como família. Este reconhecimento do "eu sou você" envolvido em compartilhar o mesmo nome, propiciava uma genuína igualdade nas diferenças, tornando o outro alguém respeitável para mim, e não uma propriedade humana a ser administrada ou usufruída.


"Eu vejo você."

      O relacionamento que não questiona a ideia de ser "conquistado", por mais sólido e harmonioso que aparente ser, pode estar sendo uma colonização para uma das partes ou para ambas, na medida que instaura a tutela unilateral ou mútua que impõe limitações, proibições, usurpação de direitos, e a menoridade às pessoas. Há alguma forma de dominação envolvida nos relacionamentos colonizadores, o que é bem distinto da possibilidade de fazer concessões que sejam parte da distribuição equitativa de direitos e deveres por meio de acordos firmados no processo construir-se a relação.


"Can't you see that you're smothering me?/Você não consegue ver que está me sufocando?/ Holding too tightly, afraid to lose control.../Segurando tão apertado, com medo de perder o controle..." (Numb, Linkin Park)

Por fim, é inevitável não deixar de pensar se, do ponto de vista da responsabilidade existencial, em uma sociedade doentia na qual o indivíduo está fadado a ter uma "morte natural", com sofrimento que seja suportável somente se for extremamente afortunado, desejar irrefletidamente possuir uma prole pode, em certo prisma, ser visto como um crime, uma falha moral, na medida em que é uma falta de esforço consciente em refletir sobre as consequências da existência para um outro. Isto porque o fato de ter filhos, para um número cada vez maior de indivíduos, quando não ocorre por razões acidentais, se origina a partir de um egocêntrico fetiche de tutelar a existência de alguém.



"Quero ter filhos, para que sejam extensões de mim mesmo, e isto está ok. Quero cuidar de outro ser porque isto torna minha existência insignificante talvez um pouco mais interessante. É meu fetiche ser o deus de um outro ser, e isto até eu enjoar..."

     Libertemo-nos enquanto ainda podemos respirar, enquanto ainda há luz do sol a ser vista, enquanto ainda há desejo em nós.


Veja, a prisão, assim se chama


Eu disse: Venha
Eu não vou me abrir desta forma novamente
Nem deitar o meu rosto no chão
Nem os meus dentes na areia
Eu não vou ficar assim por dias após o fim
Você não vai me ver cair
Nem me ver lutar para ficar
Para ser reconhecido por algum toque
De suas mãos enrugadas
Você vê, a prisão, assim se chama.
(Song for Zula- Phosphorescent)




domingo, 18 de março de 2018

O Crepúsculo das Fúrias




O remorso de Orestes, do pintor francês William-Adolphe Bouguereau.


O quanto vale a pena se violentar em função de aceitar um papel?

O momento da expressão se constitui um pesadelo, esta se manifesta truncada. A inspiração se esvai, soterrando tudo o que um dia se quis dizer. O fantasma da imposição de ser perfeito, a despeito de todas as condições reais, faz mais uma vítima. A criatividade, o entusiasmo, e a espontaneidade se tornam elementos de um universo distante, totalmente estranho ao esforçado indivíduo, um vírus agressivo que destrói também os anticorpos existenciais de empreitadas futuras.

A situação que ganha contornos inevitáveis, implica em aceitar introspecto o germinar de seu próprio transtorno de ansiedade de estimação, para que você mesmo não represente um transtorno para o mundo. Um mundo de juízes, estes condenadores da mais inquisitorial espécie, cuja programação de medo assimilamos e reproduzimos.



“Eu me odeio” é provavelmente uma afirmação que pode ter permeado os pensamentos de algumas pessoas em profundo sofrimento, antes de optarem(ou de se perceberem sem opções) pelo ato do suicídio. Nada surpreendente seria, este ser um ódio genuíno. Ódio por se sentir incapaz, fraco, ou incompetente, alimentando uma situação surreal de atacar a si mesmo sem piedade, movendo assim todas as suas armas contra si mesmo.

Esta pessoa gostaria de se arrancar de si mesma, de se separar do monstro que acredita que não deveria nem mesmo ter sido gerado, de extirpar de dentro de si a coisa cheia de limitações, das quais sente um fóbico nojo. E o juiz interior por vezes bate seu martelo: é melhor abortar este feto sem salvação, ainda que na idade adulta.

Quando por algum milagre de lucidez remanescente, a pessoa não compactua com as espadas que são apontadas para si, muitas vezes a situação já se arrastou de forma crônica, de modo que há o sentimento cada vez mais fatal de que nada se pode fazer. Instala-se uma vontade profunda na alma de simplesmente deixar de existir, de entrar nos domínios de Morpheus e ali fazer para sempre morada. Abandonar a certeza fatídica de um dia seguinte se torna assim uma opção desesperadamente tentadora. Decidir abandonar a obrigação de ser forte. Descansar. Adormecer.



Sing me to sleep(cante pra eu dormir)/I'm tired and I(estou cansado e eu)/I want to go to bed(eu quero ir pra cama)/Sing me to sleep(cante pra eu dormir)/And then leave me alone(e então me deixe sozinho)/Don't try to wake me in the morning(não tente me acordar pela manhã)/'Cause I will be gone(porque eu terei partido)/Don't feel bad for me(não se sinta mal por mim)/I want to know(eu quero que você saiba)/Deep in the cell of my heart(do fundo do meu coração)/I will feel so glad to go(eu ficarei tão feliz em partir)/I really want to go(eu realmente quero ir)/There is another world(há um outro mundo)/There is a better world(há um mundo melhor)/Well there must be(bem, deve haver)/Bye(adeus).
Música: Asleep, The Smiths


Os papéis que nos são impostos, e que aceitamos pelas mais diversas razões, desde a possibilidade de serem atrativos no início até mesmo a mais completa impossibilidade de escolha, são fortes contributos para este estado de coisas. Quando começamos a perceber que existe algo fundamentalmente errado com nossas vidas, transcorreram-se anos ou décadas de construção diária de uma super estrutura, tão intrincada quanto um relógio analógico destinado contar o tempo que nos resta, erigida de engrenagem a engrenagem, cada peça muito firmemente encaixada uma na outra, sedimentando a agonia claustrofóbica de nossa prisão pessoal. 

Talvez um dos momentos mais apavorantes de nossas vidas seja exatamente quando tentamos nos movimentar de modo a afrouxar a pressão que começa a nos cortar a carne e o espírito, e percebemos as correntes em todas as partes de nosso corpo existencial. Uma miríade de elementos que nos fazem acreditar que dependem de nossa "responsabilidade", nossa atenção e sacrifício pessoal, nos são apresentados como se estivessem estado sempre ali, e somos ameaçados com o maior dos infortúnios públicos, a condenação e o ostracismo, caso não cumpramos estes papéis que agora descobrimos que estão colados em nosso rosto, nos sufocando cada vez mais.

A certa altura, não se pode mais realizar qualquer movimento que não seja para alimentar as falsas fúrias da cobrança social, visto que você é um(a) provedor(a), uma mãe, um pai, um(a) chefe(a), um(a) empregado(a), um(a) acadêmico(a), um bom filho ou boa filha, a lista é infinita. Você é alguém que deve manter seu papel ainda que seus ossos estejam em chamas, e seu coração esteja dilacerado. Agora tudo o que você é está reduzido a uma estatística entre os mal agradecidos que deveriam estar aliviados por ainda ter uma estrutura que os sufoque. O imperativo desta sombra que paira sobre nós é: não reflita, para não sofrer. Apenas faça.



Ouvi uma piada uma vez: Um homem vai ao médico, diz que está deprimido. Diz que a vida parece dura e cruel. Conta que se sente só num mundo ameaçador onde o que se anuncia é vago e incerto. O médico diz: "O tratamento é simples. O grande palhaço Pagliacci está na cidade, assista ao espetáculo. Isso deve animá-lo." O homem se desfaz em lágrimas. E diz: "Mas, doutor...  Eu sou o Pagliacci." Boa piada. Todo mundo ri. Rufam os tambores. Desce o pano.

Fala do personagem Rorschac em Watchman, de Alan Moore.


Por que razão não intercedemos em nosso próprio favor? Por que simplesmente não ficamos do nosso lado? Por que os delírios do mundo parecem tão reais a ponto de escolhermos por suas imposições e não conseguirmos dizer “não” para eles?

Aprender a dizer “não”. Esta tarefa é assaz ingrata. Para sua realização seria necessário desenvolver um tal nível de fidelidade ao seu ser, onde o mesmo seja blindado de todas as investidas dos pensamentos torturantes, os quais ameaçam o frágil equilíbrio interior com ameaças de punição severa a quem se atrever a ignorar os protocolos sociais de auto mortificação.

Quando tudo ficou mais importante, exceto nós mesmos? Como é assustador perceber que estamos em um jogo onde nossa existência, incluindo nosso corpo, dons e habilidades, é otimizada para servir a um outro. Na máxima cristã, amplamente divulgada(e não com a mesma eficiência praticada ou compreendida) na cultura ocidental “ame o próximo como a si mesmo”, o si mesmo figura como um apêndice cuja razão de ser é a existência de um próximo.

Porém, este outro, longe de ser íntimo ou tangível, é alguém exposto à mesma cultura, e também possui seu campo de visão existencial voltado à figura de outros ainda mais distantes, se distanciando de qualquer coisa que esteja em si mesmo. E, para manter esse mecanismo de manutenção, esta rede parasítica ameaça os escravos quase dissidentes com noções como “egoísta” ou “egocêntrico”, evidentemente depois ter internalizado eficientemente em seus psiquismos o quanto é degradante moralmente ser associado a estes conceitos. Como resultado de todo este mutirão “educativo”, toda e qualquer energia de vida e realização que estes indivíduos antes possuíam escoa para satisfazer as expectativas semi-imaginárias desta quimera que está em sua mente.




Este “outro”, ou “próximo”, não é ser um idílico necessitado de nosso altruísmo, e sim um conjunto de bonecos de palha que leva a assinatura de grupos sociais dominantes e instituições que, percebendo como se beneficiar dessa dinâmica vampiresca, fomenta ativamente que cada um dê o máximo de si(beirando ou ultrapassando o impossível), para corresponder a ideias de carreira, respeito à família, para ter valor de troca diante de um mercado de trabalho, para ser alguém em alguma medida respeitável e digno de aprovação por parte da grande máquina social. Aprovação que não vem e nunca virá, conforme traduzido pela “parábola das cenouras”:

"Sabe o que é... Persiga metas. " "O que são metas?" "São como cenouras."


A vida não costuma ser tão longa(a grande busca acaba por abreviar a si mesma pelo intermédio das enfermidades), e a satisfação ou realização social por ter “vencido na vida” diante do tribunal dos outros, às vezes dura apenas tempo suficiente para encomendar uma homenagem em uma lápide. Esta, uma forma de tentar justificar de alguma forma uma existência, talvez tente desesperadamente transmitir a mensagem “Eu fui uma pessoa legal, viu? Fiz coisas boas. Por favor, lembrem de mim.”

A busca pelo "Santo Graal" do sucesso inatingível acarreta aos poucos a perda da lucidez. O nunca conseguir desenvolve um sentimento de contínua inadequação, pois, naturalmente há algo que, por mais que eu me exija a última gota de esforço, não estou fazendo corretamente.

Cada vez que me considero inadequado de alguma forma, me coloco em feroz combate, em amplo ataque contra minha essência. Não será ousado assumir que ela se retrairá, se esconderá ou se domesticará, no intuito de não ser violentamente agredida por mim mesmo. Em grandes momentos da vida, em oportunidades nas quais podemos usar nossas tendências naturais e habilidades para obter recompensas e sustento, é exatamente esta parte de nós, maltrapilha e maltratada que nos amarra, nos trava, como se nós mesmos colocássemos o pé para nosso posterior tropeço, se manifestando exteriormente, no menos nocivo dos casos, em dificuldades de desenvoltura e expressão. Não nos será permitido progredir, pois, além do tribunal das avaliações externas, o meu próprio julgamento e condenação é uma carga pesada demais para que meu sistema possa suportar. A completa instabilidade se instala representando riscos tangíveis e imensuráveis. Cai o castelo de cartas em um colapso iminente de um estado interior miserável e sofrido.

E em algum momento, acontecerá algo previsível. Alguém perderá o controle, fazendo tudo o que estiver ao alcance para escapar de sua realidade.

Oh, you're gonna lose your soul, tonight(Oh, você vai perder sua alma, esta noite)/Oh, you're gonna lose control, tonight(Oh, você vai perder o controle, esta noite)...
Lose your soul, Dead Man's Bones 


Cena do filme "Um Dia de Fúria"(Falling Down), protagonizado por Michael Douglas. Movido pelo stress resultante de suportar um conjunto de papéis que já não lhe diziam nada, o personagem busca quebrar violentamente as regras da máquina social.





O ator Robin Willians cometeu suicídio em 2014. Apesar de inúmeros papéis nos quais tinha que sustentar a imagem de bom humor e alegria, lidava com uma profunda depressão. Aqui vemos sua atuação no filme "Retratos de uma Obsessão"(One Hour Photo), onde seu personagem, Sy Parrish, sofria por se sentir invisível e solitário.
O que realmente deveria ser considerado importante para mim? A resposta estaria nas coisas que dizem respeito às minhas inclinações naturais, que trazem a sensação de fluxo, que desatam as pressões. Que constituam meu domicílio existencial. Que saem sem esforço. Há um confusão insidiosa, fruto da má vontade em eliminar a cultura do terrorismo psicológico, entre a dedicação necessária para realizar algo que traz prazer e contentamento, e o esforço antinatural que implica em "fazer força", sugerindo que faço algo que não se encaixa com minhas inclinações.

O processo de evolução e afirmação da própria essência pode ser natural. Quando, através de várias experiências que induzem alguém a sair de sua zona de conforto, o sofrimento inicial da adaptação é gradualmente substituído pelo prazer do processo e pelos sucessos a cada meta atingida, os mecanismos interiores se fortalecem culminando com a realização pessoal naquela esfera da vida. Um dom ou capacidade, devidamente lapidado, é fonte de frescor, vitalidade, prazer e recompensas, de modo análogo a uma prática física que, embora desconfortável no início, com o tempo traz força, flexibilidade e bem-estar.

Do contrário, se você (ouvindo a vida toda o discurso de que pressões externas “galvanizam” o espírito, e que cada experiência lhe fará mais forte, mais apto, e que um dia o medo e o sofrimento de passar sempre por experiências potencialmente traumáticas cessarão como mágica como resultado de seu trabalho duro), percebe que continua a colocar sem descanso cacos de vidro dentro de si a cada novo dia, e que não importa quantas vezes você faz ou passa por aquilo, nunca fica mais fácil, então pode facilmente acreditar que está “quebrado” ou com “defeito”. Afinal, como os outros conseguem e você não?

"Como os outros conseguem e você não?"

 Os fármacos diários que auxiliam alguém a caminhar durante o dia medianamente como um zumbi, também são parte dos kits de estudantes e funcionários padrão afligidos com stress, ansiedade, síndrome do pânico, síndrome de burnout, etc., e que buscam desesperadamente suportar as investidas do descontrole.

Acabei de dar um check-up na situação/O que me levou a reler Alice no País das Maravilhas/ Já chupei a Laranja Mecânica e lhe digo mais: plantei a casca na minha cabeça/ Acabei de tomar meu Dienpax/ Meu Valium 10 e outras pílulas mais/Duas horas da manhã recebo nos peito um Tryptanol 25/ E vou dormir quase em paz.../E a chuva promete não deixar vestígios...
Música: Check-up, de Raul Seixas.

Quando ouso a me perguntar a que custo estes outros “saudáveis e íntegros” conseguem tal feito, percebo que, a não ser por uma minoria que se sente prazerosamente estimulada pelas exigências do mundo, a significativa parcela restante utiliza, em uma situação digna de um drama trágico, suas últimas forças para parecer ser forte. Penso num instante na figura do titã Atlas, comumente retratado suportando um globo em seus ombros. Apago então a imagem daquela estatura corporal que lembra a do próprio Hércules, símbolo de força, e a imagino sendo substituída pelo corpo espoliado e ferido de um prisioneiro de um campo de concentração no auge de seus quase quarenta quilos. É assim que consigo abstrair o nível de esforço e pressão que alguém, dia após dia, aceita que precisa cumprir todas as expectativas de nosso sistema social falido, prestes a quebrar a si mesmo no processo, e ter seus pedaços jogados ao esquecimento. 



 Como reencontrar a si mesmo?

Talvez identificar e afastar as falsas Fúrias, instrumentos do sistema que, como aves de rapina estão bem posicionadas em nosso mundo interior, aguardando para atacar e destroçar sumariamente qualquer vestígio de espontaneidade, independência e criatividade que ousar despontar em nosso ser.

As Fúrias(ou Erínias) figuram como divindades ctônicas da mitologia grega que perseguiam os mortais ameaçando-os com terríveis castigos mediante crimes cometidos. Elas estão presentes na mitologia grega como forças primitivas relacionadas à culpa, remorso , e aos pensamentos catastróficos. Sua atuação é emblemática na perseguição ao personagem Orestes, que após ser induzido matar a própria mãe, foi atormentado pela loucura. 

Carta do Nove de Espadas do Tarô Mitológico, onde vemos Orestes sendo atormentado pelas Fúrias. Segundo sua interpretação: "Esta carta reflete uma experiência de grande medo e ansiedade. Essa é a carta do pesadelo, a fantasia do iminente desastre que não se manifesta necessariamente  como um fato concreto, mas é apavorante e doloroso graças ao poder da imaginação."


Segundo Sharman-Burke e Liz Greene: "Aqui Orestes cumpriu a sua tarefa e matou a sua mãe, sendo agora perseguido pelas Fúrias que, por sua própria natureza, não são corpóreas; elas não podem atingi-lo fisicamente ou matá-lo. Elas o atormentam por meio do sentimento de culpa-seus medos e fantasias de destruição.”

A simbologia das Fúrias aqui é um simulacro do sentido original, onde as entidades eram despertadas pelo sangue derramado, pelo crime, pela infração. Suas versões em termos de pressão social contemporânea, mesmo sendo imitações baratas, não compartilham do mesmo senso de justiça das forças primordiais clássicas, impondo em vez disso seu terror através de ilusões. Não há crime real, não há infração, apenas a instauração de uma hipnose que nos leva a acreditar que somos culpados, devedores pelo simples fato de sermos nós mesmos.  Elas estão em nós, implantadas e prontas para serem reproduzidas também em cada ato de julgamento do desempenho do outro.

A cada investida das falsas Fúrias de nossa programação interior de escravidão, devemos nos perguntar honestamente “que crime cometemos?”. Uma vez dissuadidos e libertos da ideia de que merecemos nossa dose de punição diária, podemos romper com o ciclo de maldições que afligiu Orestes, não reproduzindo de forma alguma o terrorismo psicológico que iniciou a cadeia de perseguições. Este processo tende a se tornar mais resoluto se, a pressão interna, ou seja, a completa adesão que damos aos nossos princípios mais caros, assim como desejos, inclinações e vontade, forem esmagadoramente mais importantes do que as pressões externas. Isto pode ser em parte viabilizado pela noção de comprometimento completamente desvinculado da ideia de obrigação, o que consiste em remanejar o compromisso que temos com os outros ou com o exterior, para nossas próprias demandas.



Emancipate yourselves from mental slavery(libertem-se da escravidão mental)/None but ourselves can free our minds(ninguém além de nós mesmos pode libertar nossas mentes)...


Não perca sua ligação consigo mesmo, seu fio, sua confiança. See you soon.


So lost your trust(Então você perdeu sua confiança)/ And you never should have, you never should have(e você nunca deveria ter perdido, nunca deveria ter perdido)/ But don't break your back(mas não se esforce tanto)/ If you ever see this(se você já viu isso)/ Don't answer that(não responda aquilo)/In a bullet proof vest(num colete à prova de balas)/With the Windows all closed(com todas as janelas fechadas)/I'll be doing my best(eu estarei fazendo o meu melhor)/I'll see you soon(eu verei você em breve)/In a telescope lens(em uma lente de telescópio)/And when all you want is friends(e quando tudo o que você quer são amigos)/I'll see you soon(verei você em breve)...